"Kiss, oito
anos de impunidade" é a frase do novo mural grafitado sobre a
fachada do que restou da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde
um incêndio de grandes proporções matou 242 jovens, a maioria universitários,
na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia que comoveu o
país e gerou grande repercussão internacional ainda se arrasta numa novela sem
data para terminar. Quase uma década depois, os quatro réus do caso ainda
aguardam o júri popular, que não tem data para acontecer. Na melhor das
hipóteses, ocorrerá em algum momento no segundo semestre deste ano.
"Essa situação
é muito injusta. São oito anos de sofrimento e dor e, durante esses anos, a
gente perdeu muitos familiares, pais de vítimas, que tiveram outras doenças,
agravadas pela dor da perda, e acabaram morrendo", lamenta Flávio Silva,
presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia
de Santa Maria.
Fundada cerca de
dois meses após a tragédia, a entidade reúne pais e familiares das vítimas em
busca de reparação. Flávio Silva perdeu a filha Andrielle, de 22 anos, no
incêndio. Na ocasião, ela estava na discoteca com mais quatro amigas para
celebrar seu aniversário. Todas morreram asfixiadas pela fumaça tóxica liberada
pelo fogo que consumia a espuma de isolamento acústico do local.
"A gente não
teve tempo de curtir o luto, porque nós partimos do luto para a luta. Então, é
uma questão de a gente tentar transformar a dor num ato de amor, que é esse ato
de prevenção, e tentar salvar vidas", afirma Silva.
Todo dia 27 de
janeiro é marcado por homenagens às vítimas do incêndio de Santa Maria.
Este ano, por causa da pandemia, a homenagem será virtual. A Associação de
Familiares Vítimas e Sobreviventes da Tragédia organizou uma live (transmissão online) para as 20h30
desta quarta-feira, que será mediada pelo jornalista Marcelo Canellas, com
a participação dos atores Tony Ramos, Chistiane Torloni, Dira Paes, a autora de
teledramaturgia Glória Perez, a mãe de uma das vítimas da tragédia, Ligiane
Righi, e o jurista Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos
Humanos do Rio Grande do Sul.
Mais cedo, por
volta das 2h30 da madrugada, uma sirene do Corpo de Bombeiros tocou na cidade
para lembrar o exato momento em que o incêndio começou, também como forma de
homenagear os mortos.
Situação do
processo
No processo
criminal, com mais de 85 volumes, os empresários e sócios da boate Kiss,
Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, além do vocalista da banda
Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor do grupo
musical, Luciano Bonilha Leão, respondem por homicídio simples (consumado 242
vezes, por causa do número de mortos) e por 636 tentativas de homicídio, de
acordo com o número de feridos.
Ao longo do ano
passado, enquanto o país mergulhava na crise sanitária por causa da
pandemia de covid-19, três dos réus (Elissandro, Mauro e Marcelo) travaram uma
batalha judicial vitoriosa para que o julgamento pelo júri popular fosse
transferido da comarca de Santa Maria para um foro na capital, Porto Alegre. Em
seguida, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) opinou para que
Luciano Bonilha também tivesse o desaforamento concedido, embora ele não tivesse
requisitado a medida. Dessa forma, todos os réus poderão ser julgados numa
única data e pelo mesmo júri. Entre os argumentos para pedir o desaforamento do
caso, os réus alegaram dúvida sobra a parcialidade dos jurados em Santa Maria,
por causa da comoção da tragédia, e o ambiente mais distante e controlado da
Justiça de Porto Alegre.
Distribuído por
sorteio para a 1ª Vara do Júri do Foro Central de Porto Alegre, em dezembro do
ano passado, o processo da boate Kiss agora aguarda a designação de um juiz titular
para a Vara, já que a magistrada que ocupa atualmente o posto, Taís Culau de
Barros, assumirá novo cargo no Tribunal de Justiça do estado (TJ-RS) a
partir de fevereiro. Só depois que um novo juiz da 1ª Vara for definido é
que a data e o local do julgamento serão definidos. Desde já, no entanto, a
principal preocupação dos familiares das vítimas é que o júri popular não seja
a portas fechadas e permita a participação deles.
"Em
entrevista, a advogada de um dos réus informou que estaria peticionando um júri
de portas fechadas, alegando restrições da pandemia. A gente teme que isso
ocorra. Se acontecer, vamos lutar com todas as forças para reverter. São longos
anos de espera. Aconteça o que acontecer, não teremos nossos filhos de volta,
mas a gente espera que se faça justiça", diz Flávio Silva.
Incêndio
A tragédia na boate
Kiss ocorreu na madrugada de 27 de janeiro de 2013, na região central
da cidade. Por volta das 2h30, um integrante da banda Gurizada Fandangueira,
que fazia uma apresentação ao vivo, acendeu um sinalizador de uso externo
dentro da casa noturna, e faíscas do artefato acabaram incendiando a espuma que
fazia o isolamento acústico do local. A queima da espuma liberou gases tóxicos,
como o cianeto, que é letal. Foi justamente essa fumaça tóxica que matou, por
sufocamento, a maior parte das 242 vítimas. Além disso, a discoteca não contava
com saídas de emergência adequadas, os extintores eram insuficientes e estavam
vencidos. Parte das vítimas foi impedida por seguranças de sair da boate durante
a confusão, por ordem de um dos donos, que temia que não pagassem as
contas.
O incêndio na Kiss
iniciou um debate no Brasil sobre a segurança e o uso de efeitos pirotécnicos
em ambientes fechados com grande quantidade de pessoas. Ainda em 2013, meses após
o acidente, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou uma lei
complementar estadual, batizada de Lei Kiss, que aumentou o rigor de normas
sobre segurança, prevenção e proteção contra incêndios em edificações e áreas
de risco. Em 2017, uma lei federal, também batizada de Lei Kiss, foi aprovada
pelo Congresso Nacional com o mesmo objetivo.
Apesar das
iniciativas, no caso da lei estadual do Rio Grande do Sul o prazo para
adequação dos edifícios às novas normas foi prorrogado, em 2019, por meio de
decreto, por mais quatro anos e só deve começar a valer mesmo, na prática,
a partir de 2023. "Essas prorrogações mostram quem os nossos governantes
não aprenderam nada com a tragédia. A impressão que fica é que o risco de mais
matança segue legalizado", critica Flávio Silva, acrescentando que a
prevenção deve ser vista como investimento por empresários e o Poder Público.
"O que salva vidas mesmo é a prevenção. Ela é um investimento. Enquanto
esse empresários pensarem na prevenção como despesa, o Brasil não vai pra
frente em termos de garantia de segurança".
Fonte: Agência
Brasil
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